domingo, 8 de dezembro de 2013

Imaculada Conceição - Nova leitura

Maria, por uma graça e um privilégio singular de Deus omnipotente… foi preservada imune de toda a mancha da culpa original. Assim, em 1854, Pio IX formulou o dogma da Imaculada Conceição. Ele se expressou assim porque, como todos do seu tempo, pensava que a narração do pecado original referisse à história azarada de dois indivíduos - o senhor Adão e a senhora Eva - e estava convencido que a transgressão deles tivesse causado consequências dramáticas nas suas descendências. 
Hoje os estudos bíblicos esclareceram, sem sombras de dúvidas, que esta interpretação não encontra fundamentação no texto sagrado. O trecho de Génesis não é uma narração televisiva de um facto que aconteceu no princípio do mundo, mas uma página sapiencial escrita com imagem e linguagem míticos para responder aos inquietantes interrogativos existenciais que desde sempre os homens se puseram: porque o homem faz, muitas vezes, escolhas insensatas que o alienam de se mesmo, de Deus e dos irmãos? De quem é a culpa se é inclinado para o mal, é porventura, o Criador que devia criá-lo melhor e um pouco diferente? E a tendência má que o induz a fazer o mal é invencível ou pode ser dominada? 
O autor da narração de Génesis quer reflectir, quer ajudar a compreender a dinâmica do pecado que leva os homens a rejeitar a Deus, a cometer o mal e a decretar a própria ruína. Nós não somos uns desventurados, inculpáveis descendentes de Adão e Eva - obrigados a carregar as consequências de um pecado que não cometemos - mas somos nós os Adão e Eva, colocados diante de Deus e da responsabilidade das escolhas que fazemos. 
Se esta é a interpretação da narração do livro de Génesis, também a verdade contida no dogma da Imaculada Conceição deve ser compreendida de maneira nova. 
O homem no plano de Deus 
Deus fez bem todas as coisas. O mundo saiu bom das suas mãos. Por sete vezes - número da perfeição - o autor sagrado repete, como um refrão: E Deus viu que era boa a obra por ele realizada. É a afirmação da total bondade da criação. Isto não significa que não existiria desventura, doenças, e morte… mas que o mundo perfeitamente adaptado ao plano que Deus tinha. O papel do homem era levar a cumprimento a obra do criador tendo em atenção o seu plano e gerindo sapientemente toda as criaturas. 
No início reinava a plena harmonia entre Deus e o homem, harmonia representada pela imagem belíssima do Senhor e do Homem que passeiam juntos no jardim de Eden, acarinhados pela brisa da tarde (Gen 3, 8). O plano de divino previa a harmonia entre o homem e a natureza: o mundo devia ser estudado, amado, respeitado e curado como um jardim (Gen 2,15). Devia reinar harmonia entre o homem e a mulher: nenhum domínio, nenhuma exploração, nenhuma instrumentalização egoística, só a alegria de sentir-se cada um dom para o outro (Gen 2, 22-25).

O pecado como deformação do rosto de Deus
No projecto divino entra em cena a serpente que começa a insinuar na mente do homem a dúvida que Deus o queira realmente bem. O incita a agir pela própria cabeça, a tornar-se independente, a comportar-se de maneira autónomo. Para ser si mesmo - lhe sugere - é necessário desligar-se de Deus que impõe preceitos arbitrários; é um déspota que deve ser ignorado. Não se pode confiar nele porque é ciumento. 
É com este discurso que a serpente instiga o homem a infringir os limites que lhe impõe a sua condição de criatura, lhe exorta a não tomar em consideração o plano do Criador e substituí-lo com um próprio projecto, e seguir os próprios caprichos e astúcias, o ilude dizendo-lhe que se agisse sem qualquer ligação com Deus se sentirá finalmente livre, realizado e feliz. 
Quem é a serpente? Procuremos descodificar esta figura mítica. Contrariamente àquilo que, talvez, pensamos em todo o Antigo Testamento este misterioso personagem não volta a aparecer. Só no tempo de Jesus, por influência do pensamento persiano e helenístico, os rabís começaram a ver na serpente o diabo; mas o texto do Génesis não orienta para esta explicação mas, pelo contrário, declara que a serpente é a mais astuta das criaturas de Deus. Quem pode ser?
Lendo os primeiros dois capítulos do Génesis, analisamos os seres vivos criados pelo Senhor e chegaremos à conclusão: é o homem, não pode não ser ele o mais astuto. Sim, a serpente é o próprio homem que, apanhado por um louco delírio de omnipotência, se levanta contra Deus, pensa de poder substituí-lo proclamando a própria autonomia no decidir aquilo que é bem e aquilo que é mal. Esta tentação de auto-suficiência seduz de subtilmente, penetra imperceptível, insidiosa como uma serpente, na mente e no coração do homem e o induz a fazer escolhas de morte. A este ponto entra o pecado que causa a ruptura de todas as harmonias. 
    
Onde foste parar? 
O homem que se deixa seduzir pela serpente que está nele não está mais no seu lugar. Rompeu a harmonia consigo mesmo, afastou-se da própria identidade. 
Como um pai, o Senhor sofrei mal que o filho fez; preocupado e, para o recuperar o convida a tomar consciência do sucedido. Onde estás? Não deve ser banalizado, como se Deus não soubesse atrás de qual árvore o homem se escondeu. Significa: reflecte, toma consciência daquilo  que fizeste e das consequências daí resultantes. Olha onde foste parar, considera como te reduziste. O que fizeste da tua vida?
A resposta do homem está longe de ser uma tomada de consciência do próprio pecado: ouvi a tua voz no jardim: tive medo e me escondi (v. 10). Quando escolhe de comportar-se de maneira autónoma nas escolhas morais, o homem rejeita Deus e a sua Palavra, não o considera um amigo, mas um estranho, um intruso perigoso para a própria independência e liberdade. Esconder-se do Senhor, significa abandonar a oração, desinteressar-se da escuta da Palavra de Deus, distanciar-se da vida da própria comunidade para não ser posto em discussão, para não sentir-se interpelado nas próprias escolhas. O homem tem medo de Deus porque teme que ele o prive da felicidade. Na verdade, porém, é afastando-se dele que precipita no abismo da confusão total. 
O passo seguinte é a vergonha da própria nudez. No fim da narração da criação da mulher, o autor sagrado anotava: Ora os dois estavam nus, o homem e a sua mulher, e não sentiam vergonha (Gen 2,25). 
Aqui a nudez não tem nada a ver com o pudor e o sexo, indica a condição natural, originária do homem. é o estado em que vimos ao mundo: assim como saiu do ventre da sua mãe de novo nu partirá como veio (Ecl 5,14). Espoliado daquilo que se põe no próprio corpo - bens, honorificências, prestígios, posições de poder, notoriedade - o homem permanece si mesmo, com limites, as fraquezas, as fragilidades que caracterizam a sua realidade de criatura. Desta nudez a pessoa sã não se vergonha mas a acolhe com serenidade e a ama; não pensa minimamente de ceder à loucura de ultrapassar os próprios limites, não considera um falhanço a incapacidade de resolver a todos os problemas, não considera uma derrota a fraqueza física, psicológica e moral, a ignorância, a doença e a morte. É a serpente que é em nós que nos leva a rejeitar esta realidade, que solicita a libertar-nos de Deus para nos transformarmos em super-homens. 
  
Ruptura de harmonia com os irmãos
É a segunda consequência da decisão de desmarcar-se de Deus nas escolhas morais (v.12). Adão acusa Eva, esta atribui a culpa à serpente, mas, bem visto, ambos querem fazer recair a culpa sobre Deus que teria criado um mundo errado. Adão se justifica dizendo: io não fiz outra coisa senão confiar-me da mulher que me deste por companheira (v. 12); se ela, porém, em vez de aproximar-me de ti me afastou, quer dizer que a fizeste mal. Esta reacção representa a tentativa de descarregar a responsabilidade do mal cometido sobre um bodes expiatórios que podem ser a família onde se nasceu, a sociedade, a educação recebida e, em última análise, Deus que quis que o homem não pudesse realizar-se senão no encontro com os próprios semelhantes, os quais, porém, muitas vezes, em vez de levantá-lo nas alturas, o puxa para baixo. 
A mulher, por su vez interrogada, dá a culpa á serpente e, como a serpente não é outra coisa que a outra face da nossa realidade de homens, então as suas palavras constituem uma acusação em relação a Deus. Eva, de facto, lhe mostra o seu erro: tu fizeste mal as coisas criando o homem assim como é, capaz de realizar loucuras e crimes. Porque não o criaste perfeito? Porque razão existe a serpente  insidiosa que injecta veneno mortal? 
Formulada de maneira diferente, esta é a objecção que se pode continuamente repetir mesmo hoje diante do problema da existência do mal. É esta pretensão de um mundo e de uma humanidade perfeita que está a rejeição da própria nudez. 
Depois de ter chamado em causa o homem e a mulher, esperávamos que Deus chamasse também a serpente. Não o faz porque a serpente não é outra criatura distinta do homem, mas é a parte do homem que se opõe a Deus, aquela que rejeita a própria condição e o próprio limite. 
  
Anúncio da vitória plena sobre a serpente 
A serpente será invencível? O homem é destinado a permanecer para sempre escravo da força do mal que, como uma raiz má, leva consigo desde o concepimento (Sl 51,7)? Do nosso ponto de vista a condição humana parece desesperada e Paulo a descreve em tom dramático: (Rm 7,15-24). 
Na última do trecho Deus responde a esta inquietante pergunta. A luta entre a sapiência de Deus e a serpente, as duas presentes no homem, continuará até ao fim do mundo, mas o êxito deste confronto está já determinado. A serpente é declarada maldita, isto é privo de força sobrenatural e portanto não irresistível; pode ser vencido e de facto o será. A su derrota e decretada e é descrita com imagens bélicas muito eficazes. Comerá a terra, isto é, irá ao encontro da humilhação (Sl 72,9), rastejará sobre o seu ventre, como são obrigado a rastejar os inimigos vencidos diante do vencedor (Sl 72, 11).
Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça e tu tentarás mordê-la no calcanhar  (v.15). Esta é a última imagem, a mais viva e dramática, com que se fecha o anúncio da derrota da serpente. O conflito continuará, a serpente tentará de todas as formas, até ao fim, colocar em acto as suas insídias mortais contra o homem, mas não conseguirá e será o homem - descendência da mulher - a esmagar-lhe a cabeça. 

É este a primeira boa notícia - mesmo que ainda vago e indefinido - da vitória do Messias, nascido da mulher (Gal 4,4). À luz desta leitura, a proclamação da Imaculada Conceição de Maria assume um significado novo e estimulante. É o convite a voltar o olhar para aquela que, desde o seu concepimento, realizou aquela harmonia perfeita que Deus sonhou desde a primeira manhã do mundo. É imaculada desde o seu concepimento, isto é, na totalidade da sua existência. Nela a vitória sobre a serpente foi completa porque nela o Espírito divino que animou seu filho pode operar as suas maravilhas (Lc 1,49). O sinal mais nítido do triunfo de Deus sobre o mal.   

(Al Servizio della parola - Trad. Frei Gilson Frede) 

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